sexta-feira, 28 de agosto de 2009

o corpo como vertigem*

por Nilson Oliveira**

Algumas imagens chegam até nós provocando uma sensação de estranhamento. Pela força indescritível de sua presença, vão cada vez mais atraindo, arrastando e seduzindo-nos como um canto de sereias. Não há miragens, o inferno é ver. Essa viagem nos causa uma sensação de estranhamento, mas sua força, seu modo de nos arrancar os olhos, consiste nesse estranhamento. A imagem mantém-se em nós tão somente por ser esse fora indescritível, pelos lances que vimos, mas não conseguimos apreender, como um vulto. Assim encontramos as fotografias de Francesca Woodman, figura curiosa que, como suas imagens, seduziu sem deixar pistas. Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: seu devir-outro-fotográfico, sua imagem-vulto: trata-se de uma quase miragem, um vulto, algo que atravessa o espaço intenso da vida refletindo uma outra imagem, o além de si, que vaga desfocado, entranhada entre o tempo e espaço, como se deles fizesse parte, mas sem habitar nenhum, como uma sombra que toca sensivelmente nas coisas, atravessando as superfícies mais rudimentares, refletindo a sua natureza, sombra, sem expressar, dor, desassossego ou vontade, apenas transitando pelas coisas, acompanhando o falso movimento dos olhos, como a imagem que em silencio espreita o deserto da lente. É a dispersão do corpo, do rosto e do próprio olhar, de um corpo que jaz enterrado na fronteira entre a ausência, a aparição. Um corpo que sempre reflete à sombra de uma outra imagem, uma imagem falha; que quando mirado, se dispersa entre as coisas do mundo. Nessa esfera não há representação do rosto nem, portanto, do olhar. Seu rosto nada revela. A verdade de sua aparência é um enigma, um exílio. Sua substância acontece, fora de si, no espaço que há entre a força que o move e o mundo que o acolhe. Sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas de uma sombra, de algo que é inteiramente vivo e no entanto não orgânico. Há nas fotografias de Francesca algo que nos força a pensar. Este algo nos arremessa de encontro a realidades em que muitas vozes se atravessam, por vezes ouvimos Artaud: o pulsar o corpo sem órgãos; por vezes Bataille: a febre e a intensidade; mas por vezes, entre a sombra e a claridade o canto silencioso de Rilke: a sombra da morte. Mas isso, esse turbilhão de coisas e vozes, nas fotografias de Francesca Woodman, só pode ser apreendido a partir de uma perspectiva da sensação, em vôos que o olhar mergulha no diverso e nele se perde, sob a égide da paixão, da dor ou da morte. Em sua primeira característica, e sob qualquer tonalidade, essas imagens só podem ser sentidas. Não é uma estrutura, mas uma abertura, a fissura pela qual os olhares se atravessam. Ela é também, de certo modo, o incomunicável; segundo o caso da arte, o incomunicável, passível no entanto de comunicação. Nas suas fotos, cada imagem parece perdida de uma atmosfera identitária, em cada foto é sempre outra, como se seu corpo estivesse mergulhado em um contínuo jogo de simulacros onde a origem, a verdade, a matriz, há muito se apagou. Não há realidades, mas tudo é o que é: um corpo estendido no deserto de uma paisagem. O deserto é a fotografia, mas o corpo parece atravessado de sensações, de febre, de morticidade. Tudo parece vivo e morto. como se a vida fosse o fora da morte, mas a morte o seu dentro, sua afirmação inevitável. Francesca transcorre pela linha que cruza de uma realidade a outra. Nas suas fotos, as linhas estão sempre se encontrando, fabricando dobras, redobras, criando um aberto de possibilidades com a força de uma máquina desejante, que da sua intensidade-corpo, passa para uma máquina-desejo, que, no seu funcionamento, engendrada uma corrente de fluxos, cortes, vultos, peles. Nas suas imagens, há sempre uma pulsação de intensidades operando no seio de um acontecimento: série binária é não linear vazando por todas as direções. O desejo não cessa de efetuar acoplamentos de fluxos, pensamentos, volúpia, sobra, pele. O corpo de Francesca parece amarrado ao seu limite, mas dele escorre uma leveza indescritível. A sua imagem revela-se como uma quase epifania, mas nunca da ordem de um sagrado. Sua imagem atravessa a fotografia como o Monge Negro rasga a retina do jovem Kovrin, conduzindo-o ao seu limite, mas a atração também. Kovrim é atraído a ir, e vai atravessando todos os riscos que implicam esse ir: Kovrin reteve a respiração, seu coração parou de bater e o mágico, extático transporte que há muito tempo esquecera, voltou a palpitar em seu coração. O susto é inevitável. Assim foi Francesca na sua experiência com a fotografia, mas sobretudo, na sua viagem à superfície do corpo. Lembremos Valery: o mais profundo é a pele. Essa foi a sua viagem, ao profundo da superfície, às entranhas da derme. Assim vamos nós ao encontro das suas imagens, numa experiência da sensação e do ver. O susto arderá através das retinas. Francesca Woodman nasceu em Devem, Colorado, em 1958. Começou a fotografar aos 13 anos. Seu foco de experiências era o próprio corpo. Em Janeiro de 1981 publica o livro “Disordered Interior Geometries”. Uma sema depois, atravessa a janela do seu apartamento.

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*Este texto foi-nos enviado por e-mail.

**Nilson oliveira, é editor da revista Polichinello; autor de Apenas Blanchot (org), [Pazulin, 2008]; A Outra Morte de Haroldo Maranhão [IAP, 2006]


imagens:








segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Há algo de podre em Gramado

Quando soube que Xuxa estava no festival de Gramado para receber um prêmio, eu não quis acreditar. Afinal, quem é Xuxa? O engraçado é que ela tem aparecido em grandes eventos ultimamente, ou de música (como o festival que Al Gore promoveu) e agora de cinema, como se ela fosse cantora ou atriz, e todos nós sabemos que ela não é nenhuma coisa nem outra. Ela é apenas uma oportunista, desde o início da sua "carreira (pseudo) artística" isto ficou claro. Foi até mesmo desconfortável ver no jornal da tarde da rede globo ela desfilando. A "reportagem" não falou praticamente nada do festival, se prendeu apenas a uma desnecessária comparação com o Oscar. Comparação esta que parecia ter como único objetivo dizer, no fim da reportagem, que nosso cinema era pobre de orçamento. Enfim. Depois de ver certos deputados donos de castelos serem absorvidos, de jornal ser censurado para não divulgar reportagens sobre o filho de Sarney, e de ver a investigação dos "atos secretos" do próprio ser arquivado, só faltava ver mesmo Xuxa recebendo prêmio de cinema (se ao menos fosse o Framboesa de Ouro).