terça-feira, 28 de outubro de 2008

FERREIRA GULLAR: POR UMA NOVA ESTÉTICA DA ARTE








Uma das máximas da arte de vanguarda é que chegaram ao limite disso ou daquilo. Ao limite da linguagem, ao limite da representação, ao limite da narrativa. Esse comportamento muito comum até o final dos anos sessenta, se olhado retrospectivamente, é um dos charmes da época. O que ocorreu depois disso tudo é que as artes continuaram, ou seja, os limites são muito mais amplos do que se supunha. A reação a essa obrigatoriedade da invenção vem com a arte de setenta pra cá, com outra máxima: tudo já foi feito ou o "tudo já foi dito" (Gide). O que desobriga o artista de ficar fuçando uma novidade, daí o remix, a releitura, a referência. Mas essa é também uma frase de efeito, um charme da época atual. Isso porque é impossível que tudo já tenha sido feito. Há ainda muito por fazer. Sempre vai haver. Enquanto houver uma nova pessoa há grandes chances de haver uma nova descoberta no campo estético.
A linguagem também é veículo de uma visão de mundo. E a cada nova geração, ou a cada nova pessoa que surge no pedaço, a linguagem ganha novos coloridos e, quando menos se espera, ela se reinventa (um exemplo: a linguagem roseana). Falo de linguagem no sentido de conjunto de procedimentos artísticos nas diversas artes (falo também de Artaud). Mas por mais iludida que tenha sido a busca das vanguardas, acreditando ter atingido os limites, a postura de se colocar o desafio de fazer algo próprio, diferente em algum aspecto do que se conhecia até então, acabou alargando as possibilidades de pensar e realizar as diversas artes. É o que se pode constatar na leitura do livro Experiência Neoconcreta, do poeta Ferreira Gullar. Ele conta sua trajetória como poeta de vanguarda. Foi procurado pelos concretistas no início do movimento da poesia concreta. Os irmãos Campos e Décio Pignatari já haviam farejado a novidade na poesia de Gullar. Juntos, formularam o que seria o pontapé inicial do que trouxe muita novidade para a poesia do mundo todo. A seguir, Gullar, por discordar de alguns dos pontos programáticos dos concretistas, cria com outros poetas e artistas plásticos o Movimento Neoconcreto. Livro-poema, um poema que sozinho é um livro. Poemas interativos muito antes desse ambiente internético. Caixas que o leitor deve ir abrindo e lendo-descobrindo o sentido. Poema enterrado, uma sala em que o leitor entra para ler o poema. Cortes nas páginas para propor uma determinada leitura. E uma série de propostas criativas que foram insights também para os artistas plásticos do grupo, como Hélio Oiticica e Lygia Clark. Tanto que Gullar acabou se questionando se não estava sendo menos poeta e mais artista plástico, uma vez que seus poemas tinham cada vez menos palavras, às vezes uma só. O bom desse livro é que Ferreira Gullar conta e reflete sobre o período com os olhos de hoje. E a publicação traz também os textos, manifestos e formulações da época, além de reproduções de vários poemas, inclusive de poemas-livros. Concreto, neoconcreto ou apenas poeta, é sempre o grande artista Ferreira Gullar.
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referências:
GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta. Momento-limite da arte. São Paulo, 2007.













por Rodrigo Sérvulo.


sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Um monstro entre nós - O fundamentalismo cristão no filme O Nevoeiro


A premissa do filme O Nevoeiro (The Mist, 2007), é que o verdadeiro monstro somos nós mesmos quando o medo nos domina. De uma maneira diferente de um animal — que quando acuado por este sentimento tão básico se defende com sua voracidade — o ser humano tenta justificar sua violência da pior maneira, até mesmo usando suas crenças mais arcaicas. É dessa forma que entra o fundamentalismo cristão numa situação absurdamente desesperadora. Chegando ao ponto do assassinato ser “justificado” pela fé em Deus (atitude usada exaustivamente pela Igreja nos tempos da Inquisição), enquanto o mesmo ato, cometido em outras circunstancias (neste caso para proteger mais vidas) é condenado pelos cristãos do filme.

Baseado num conto de Stephen King e Adaptado por Frank Darabont (igualmente diretor e roteirista de Um Sonho de Liberdade e À Espera de um Milagre, ambos também adaptações de obras de King para o cinema), O Nevoeiro é um desnudamento do caráter de cada um, mostrando sua verdadeira face, que muitas vezes, durante a projeção, é monstruosa. Exatamente por isto, e pelo surrealismo da situação, talvez não seja exagero comparar esta moderna obra do cinema de ficção/terror com O Anjo Exterminador do mestre Luis Buñuel. Ambas têm um grupo de pessoas enclausuradas tentando lidar com uma situação absurda enquanto suas personalidades se desmantelam. E, na medida em que o filme segue, sentimos muito mais medo dos personagens humanos do que dos monstros que os atacam por puro instinto carnívoro e irracional. E é exatamente a razão, substituída pelo fundamentalismo cristão, que falta na maioria das personagens enclausuradas dentro de um supermercado estadunidense. Acredito que até mesmo a escolha da locação não foi um mero acaso cinematograficamente estético e literário. A maior parte da projeção é dentro de um típico supermercado lotado. Talvez seja possível vermos aí certa crítica à sociedade de consumo. Sociedade esta que se desfaz de sua civilidade quando o medo se instala dando lugar ao caos.

E o medo é a forma mais eficaz de converter “infiéis” para qualquer religião, principalmente a cristã que, na sua história, tem longa experiência neste tipo de estratégia. O que me faz repensar sobre a locação escolhida, ao notar que, na medida em que determinada personagem evangélica converte um número cada vez maior de desesperados com sua pregação interminável e condenatória, é possível perceber, numa irônica inversão, o comércio (neste caso, o supermercado) se tornar templo num mundo em que o templo cristão há muito se tornou comércio.

Além de uma direção bastante sensível e uma roteirização cuidadosa, o filme ainda surpreende com a coragem do seu final nada convencional (contrariando qualquer produtor caça-níqueis de Hollywood). E mesmo apreciando o final por causa desse motivo, ainda assim fica um gosto amargo de um sentimento de perda ao qual somos levados a sentir pelo desfecho inesperado.

Para concluir, não indico esse filme àqueles que esperam um mero filme de terror, cheio de clichês característicos do cinema atual norte-americano. Este é um filme denso e claustrofóbico. Contudo, surpreendentemente humano.